segunda-feira, 9 de maio de 2011


Escolas públicas têm merenda estragada e ratos na cozinha

Em um mês de investigação, uma equipe do programa flagrou a péssima qualidade da merenda em escolas públicas do país: comida estragada, vencida, armazenada de qualquer jeito, intragável.

Atenção, mães e pais com filhos em colégios públicos. Em um mês de investigação jornalística, o Fantástico encontrou na merenda escolar: comida estragada, vencida, armazenada de qualquer jeito, intragável. Uma situação revoltante, de deixar qualquer um indignado.

"Uma boa alimentação, coma frutas, verduras e legumes", diz o recado no mural. Na teoria, tudo certo. Mas, na prática... Um homem traz os alimentos da merenda: carne moída. A comida veio em um caminhão, exposta ao sol e sem refrigeração. Nas embalagens, não há nome do fabricante nem data de validade.


A merenda é para uma escola estadual de Novo Gama, em Goiás, de 95 mil habitantes, a 40 quilômetros de Brasília. São cerca de 1,5 mil alunos.

“Eu lancho só de vez em quando. Dia desses, nós achamos uma barata dentro do lanche”, conta um aluno.

Na cozinha da escola, foram achados três gatos andando de um lado para o outro. Este é só um entre os vários péssimos exemplos que o Fantástico encontrou durante um mês de investigação jornalística. São dezenas de flagrantes de descaso.

“Não tem nada para comer. Ficamos sem”, diz Graziele dos Santos, de 12 anos.

Quinta-feira, 7 de abril. Natal registra 31ºC e uma escola não tem água. as crianças têm que levar de casa. E esse não é o único problema. Às 15h, os alunos foram embora mais cedo porque não havia merenda.

“Está sem lanche”, contou Micarla dos Santos, de 11 anos.

Foram apenas duas horas de aula – uma situação que se repete em outras escolas municipais de Natal.

“Nos sentimos obrigados a diminuir o horário pelo fato de muitos passarem mal, com dor no estômago e até mesmo desmaios”, revela a coordenadora pedagógica Elaine Medeiros.

Em um colégio com 400 alunos, a cozinha está completamente vazia. Percebe-se que o fogão não é usado há muito tempo, nem as panelas. No depósito foi encontrado milho vencido.

“Isso é um descaso com os pais, com as crianças”, comenta Marlene da Silva, avó de uma aluna.

“Nós já estamos com toda uma logística montada para a normalização completa em todas as escolas da rede”, assegura o secretário de Educação de Natal, Walter Fonseca.

A equipe do Fantástico visitou mais de 50 escolas públicas – estaduais e municipais – de cinco estados: São Paulo, Goiás, Rio Grande do Norte, Paraíba e Bahia. Todos sempre se apresentaram como jornalistas.

Em Itaparica, cidade turística baiana, foram a duas escolas municipais. Uma funcionária contou que quase não tem merenda e, naquele momento, só havia açúcar no estoque. Desde o início do ano, a geladeira da escola está vazia. Só tem água gelada.

De barriga vazia, Marcelino, de 11 anos, aluno do 6º ano, volta para casa, onde mora com a irmã e a mãe. O pai morreu. Desempregada, a mãe conta que não é todo dia que a família consegue comer.

“Lavei umas panelas para uma criatura lá embaixo. Daí, comprei um peixe e um feijão. Tenho que dar um jeito de não deixá-los sem almoçar”, conta Maria Margarete dos Mares.

“Com essa falta de merenda, automaticamente eles não vêm. Há uma evasão”, revela Jurail dos Santos, funcionário de uma das escolas.

O Fantástico foi atrás de explicações. Um funcionário informou que o prefeito havia encerrado o expediente às 14h. A equipe de reportagem ligou todos os dias desta semana para a prefeitura de Itaparica. Foram deixados vários recados, mas ninguém retornou.

Este ano, o Ministério da Educação vai repassar mais de R$ 3 bilhões a governos estaduais e prefeituras para a compra de merenda. O objetivo é beneficiar 45 milhões de estudantes. A Controladoria-Geral da União ajuda a fiscalizar como o dinheiro é gasto.

“Nós temos visto problemas nas áreas de licitação e também no recebimento, na armazenagem e no preparo da merenda”, diz Valdir Agapito Teixeira, secretário de Controle Interno da Controladoria-Geral da União.

Fotos tiradas pelos fiscais da controladoria são a prova do descaso. Em São Bento do Tocantins, por exemplo, foi encontrado um sapo ao lado da comida.

Em Branquinha, Alagoas, não havia água potável no colégio e no armário da merenda, um foco de baratas.

“Nós temos encontrado coisas absurdas de armazenamento em banheiro, em condições sem ventilação”, diz Valdir Agapito Teixeira.

Em Nazaré, Bahia, as refeições dos mais de quatro mil alunos da cidade saem de uma cozinha da prefeitura. Segundo uma funcionária, as crianças comem biscoito de má qualidade por pressão do fornecedor dos alimentos.

“Eu falei que não ia receber. Então, não teria merenda. Eu fui pressionada pelo fornecedor que venceu a licitação. O biscoito não tem um sabor agradável”, diz a funcionária.

Depois de saber que o Fantástico preparava a reportagem, a prefeitura de Nazaré informou que o contrato com o fornecedor foi cancelado e que a nutricionista pediu demissão.

E o que dizer quando a merenda está toda estragada? Foram encontradas embalagens de arroz dentro do prazo de validade em local inadequado. A escola municipal fica em Vera Cruz, cidade baiana de 37 mil habitantes, na Ilha de Itaparica. A instituição tem 17 alunos. A merenda é feita no mesmo local em que ficam o estoque e o fogão. Bem ao lado, fica o banheiro.

Foi encontrada comida vencida e mofada. O macarrão estava com bicho.

“Isso não representa a realidade do município na gestão da merenda escolar nem na gestão da educação de modo geral. Não vai acontecer mais de maneira nenhuma”, assegura o prefeito de Vera Cruz, Magno de Souza Filho.

O Ministério da Educação (MEC) determina o que deve ter no prato dos estudantes. A merenda precisa suprir, no mínimo, 20% das necessidades nutricionais diárias e ter pelo menos três porções de frutas e hortaliças por semana. Doces e alimentos enlatados, semiprontos e embutidos podem ser oferecidos, mas com moderação. Exemplo de embutido é a salsicha, muito comum nos colégios por onde a equipe do Fantástico passou.

Este é o cardápio do mês da escola municipal em Novo Gama, Goiás: salada, seleta de legumes, filé de peixe ao forno, lasanha. Mas, segundo os funcionários, isso é só no papel.

“No cardápio, é chique demais. Mas, na prática, não vem. É fantasioso, para ganhar a verba. Mas não chega”, diz uma merendeira.

Quando o arroz está cheio de insetos, a recomendação é ir para o lixo, mas não na escola goiana.

“Eu mostrei para a nutricionista. Ela falou para eu colocar no sol que resolve o problema, e o bichinho sai”, conta uma merendeira.

A Secretaria de Educação de Novo Gama informou que não permite a distribuição de merenda com irregularidade. Negou que o cardápio seja fantasioso, alegando que a merenda muda, conforme os alimentos em estoque.

Em escola municipal de Santa Teresinha, na Bahia, a tubulação de esgoto passa pela cozinha. O charque estava sem data de validade. Entre os sacos de comida, muitas formigas.

Em novembro passado, na Bahia, a Polícia Federal prendeu sete prefeitos. Entres a acusações, desviar verbas federais e favorecer uma empresa distribuidora de merenda, que superfaturava preços e não entregava comida. Entre os políticos presos, estava o prefeito de Santa Teresinha, Agnaldo Andrade. Ele ficou dois dias na cadeia e continua no cargo.

A nutricionista da prefeitura reconhece que a merenda não supre as necessidades nutricionais, mas alega que os ingredientes, mesmo insuficientes, são de boa qualidade. Diz que as embalagens são lavadas e que, por isso, as etiquetas com a validade e a fabricação caem.

Na nota, há uma foto mostrando como o município diz ter resolvido o problema do esgoto na cozinha. Sobre as formigas, a nutricionista alega que os funcionários são orientados a limpar a despensa uma vez por semana.

Uma das explicações para tantos problemas nas merendas é a corrupção. O Fantástico teve acesso, com exclusividade, a dois depoimentos que, segundo o Ministério Público, ajudam a entender o caminho das fraudes.

O Fantástico não mostrou o rosto das pessoas porque a investigação ainda está em andamento. As testemunhas dizem que têm medo de morrer, que estão sendo ameaçadas.

Genivaldo Santos é ex-sócio da Verdurama, empresa paulista do ramo de refeições prontas. A chamada merenda terceirizada é quando a cidade contrata uma empresa e paga para que ela fique responsável pela alimentação dos alunos. Genivaldo, que esteve à frente da Verdurama entre 2002 e 2008, foi interrogado em março deste ano por um promotor de São Paulo.

“Eu tinha a finalidade de pagar algumas propinas de alguns municípios. A média da propina era de 10%”, revela. Esse valor corresponde a cerca de R$ 70 milhões de propina por ano.

O ex-sócio da Verdurama aceitou contar tudo em troca de uma possível redução da pena. Genivaldo Santos confessa que, durante a gestão dele, as refeições servidas em 28 cidades de cinco estados eram de péssima qualidade.

“Sempre é um pedaço de meia salsicha, ou ovos, ou arroz ou bolacha. Na maioria das vezes, o que consta no contrato nunca foi cumprido”, conta Genivaldo Santos.

Em nota, a atual direção da Verdurama diz desconhecer o pagamento de propina e que se há algum responsável pelas supostas irregularidades, ele é Genivaldo Santos.

Agora, quem fala é uma testemunha-chave em uma investigação contra a prefeitura de Taubaté, no interior paulista. O homem acusa o atual prefeito, Roberto Peixoto, e a primeira- dama de receber propina de uma empresa de merenda chamada Sistal. Ele diz que, duas vezes por mês, durante três anos, entregou dinheiro da corrupção para o casal.

“Eu servia de mulas para eles”, conta. O homem calcula que Roberto e Luciana Peixoto receberam cerca de R$ 5 milhões de propina. “Eles estão montando uma boate em Taubaté agora”.

A casa de shows é uma das maiores da região e está registrada na junta comercial em nome de Anderson da Silva Ferreira, o genro do prefeito.

O Fantástico também foi a um sítio. A testemunha do Ministério Público disse em depoimento e também para a equipe de reportagem que o sítio está entre os bens comprados pelo prefeito com dinheiro de propina.

Segundo o denunciante, o valor do sítio foi R$ 250 mil reais, pagos em agosto de 2007.

“O pagamento foi feito à vista, de uma vez só, e o dinheiro foi levado na bolsa. Ele parou o carro ao lado do meu. Eu coloquei a bolsa dentro do carro dele”, relata a testemunha.

“Já existem provas materiais no sentido de que houve pagamento de propina e aquisição pelo prefeito de bens imóveis incompatíveis com os seus rendimentos”, constata o promotor de Justiça Sílvio Marques.

Em nota, a Sistal diz que jamais pagou propina a Roberto Peixoto. O Fantástico procurou o prefeito de Taubaté. Sobre essa nova denúncia, ele indicou para falar o secretário de governo.

“É uma acusação descabida. O objetivo do prefeito não era ter nenhuma vantagem pessoal com este contrato. Muito pelo contrário, era melhorar a alimentação, a merenda escolar da nossa cidade. A casa de shows pertence ao seu genro, portanto, não tem nenhuma ligação jurídica ou econômica com o prefeito”, afirma o secretário de Governo de Taubaté, Adair Loredo dos Santos.

“Mais de 50 prefeituras estão sendo investigadas neste momento em todo o país. O Ministério Público tem prova documental e prova testemunhal do pagamento de propina”, diz Sílvio Marques.

Depois de três anos de investigações e mais de 40 pessoas ouvidas, o Ministério Público de São Paulo acusa seis empresas de participar da máfia da merenda.

“Eles se reuniam frequentemente na capital de São Paulo e dividiam o mercado de licitações no Brasil todo”, conta o promotor de Justiça de São Paulo Arthur Pinto de Lemos Junior.

Uma das empresas investigadas é a SP Alimentação. O dono, Eloizo Durães, chegou a ser preso ano passado, acusado de pagar propina a dois vereadores de Limeira, interior paulista. Entre as 13 cidades atendidas pela empresa, estão quatro capitais: São Paulo, Recife, São Luís e João Pessoa.

Recentemente, em 9 de fevereiro, a Promotoria de Defesa dos Direitos da Educação entrou na Justiça com uma ação civil pública apontando irregularidades na merenda de João Pessoa. São réus o prefeito Luciano Agra e a SP Alimentação.

O Fantástico foi a uma escola municipal de João Pessoa, com cerca de 800 alunos. A merenda do dia foi mungunzá, uma comida típica do nordeste, à base de milho e coco. Mas muitos alunos recusam o mungunzá da escola. Reclamam do gosto ruim. Parte da merenda vai para o lixo.

Em um documento de 2010, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação apontou que os cardápios das escolas de João Pessoa não atendiam às necessidades de calorias e de alguns nutrientes. E, de acordo com o Ministério Público, ex-nutricionistas da SP Alimentação eram obrigadas a transportar alimentos em seus carros particulares, gerando grave risco de contaminação.

O Fantástico foi a outra escola da capital da Paraíba, onde estudam cerca de 700 crianças. A equipe de reportagem acompanhou a entrega da carne. Sob sol forte, a uma temperatura de 31ºC, a carne é transportada em um veículo não refrigerado. A comida chega a ser colocada em cima do carro.

“Vem congelado”, justifica um funcionário.

Na escola, neste dia, as crianças comem macarrão com carne. Muitas crianças reclamam da qualidade da merenda. Parte dela vai para o lixo. A equipe do Fantástico ficou quatro dias em João Pessoa. Em todos, foi registrado o desperdício de comida. Em um colégio, segundo o diretor, a merenda jogada fora daria para alimentar mais de cem crianças

Em janeiro, o Ministério Público recomendou à prefeitura que o contrato com a SP Alimentação não fosse prorrogado. Mas isso não aconteceu. A Secretaria de Educação de João Pessoa disse que a contratação da empresa foi acompanhada pelo Tribunal de Contas da União e que está dentro da lei.

Alegou também que a maioria das crianças aceita bem os alimentos servidos. Também em nota, a SP Alimentação disse que obedece a todos os procedimentos legais e que 90% dos diretores das escolas de João Pessoa aprovam a merenda da empresa.

O Fantástico pediu à professora de ciências dos alimentos Gilma Sturion, da Universidade de São Paulo (USP), que analisasse dez cardápios de escolas visitadas pela equipe de reportagem do programa, inclusive das de João Pessoa.

“Têm baixo valor energético, é muito deficiente em frutas e hortaliças. Todos os municípios têm condições de fazer uma boa merenda, é só otimizar os recursos. Um prato com arroz, feijão, alface, beterraba, carne e chuchu refogado sairia por R$ 0,80. Se fosse frango, sairia por R$ 0,60”, diz a professora.

O Fantástico procurou o MEC. Em nome do ministério, falou o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Daniel Silva Balaban.

“Aqueles maus gestores são processados administrativamente, e, se for o caso, criminalmente”, diz. Sobre a merenda terceirizada, ele afirma: “Nós não apoiamos a terceirização da merenda porque achamos que a merenda escolar deve ser realizada em cada município. Recurso do governo federal não pode ser utilizado para pagamento de terceirização”.

Das mais de 50 escolas que o Fantástico visitou, entre os vários flagrantes de descaso, foi encontrada uma situação que é um resumo do que acontece em muitos colégios públicos. Uma escola estadual que fica em Águas Lindas de Goiás tem quase 2,3 mil alunos e um apelido: Carandiru – referência ao famoso presídio paulista que já não existe mais.

“Os alunos brigavam muito, vinham armados. Daí, esse nome”, explica a diretora da escola, Maria Cleusa Ribeiro.

Na instituição, a merenda só sai, diz a diretora, por causa do esforço dos funcionários.

“Compramos fiado, porque o dinheiro nunca chega no início do mês para podermos comprar. Algumas crianças necessitam desse lanche mesmo. Elas vêm por causa da merenda”, diz a diretora.

A Secretaria de Educação de Goiás diz que vai tomar providências, inclusive na escola que tinha gatos na cozinha.

“Nós vamos mandar uma equipe para ver isso de perto. Se chega alguma denúncia aqui, no dia seguinte, tem uma equipe no local”, assegura Sonia Piero Bom, superintendente de gestão da Secretaria de Educação de Goiás.

Uma aposentada de Águas Lindas de Goiás cuida dos sete netos. A família vive com cerca de R$ 500 por mês.

“A gente não passa um dia sem comer. Só que não é coisa boa. Tem dia que eles dizem que não teve lanche e ficam com fome. Quando eles lancham lá, já ajuda”, conta a aposentada.

“Interfere na aprendizagem do aluno, no desenvolvimento da criança. Então, eu acho que teriam que priorizar. E isso se faz quando se quer”, conclui Gilma Sturion.

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